Às
voltas com uma grave crise no setor de aviação civil, o governo do presidente
interino, Michel Temer, está disposto a patrocinar uma reviravolta no mercado
da aviação civil com a entrada de empresas de baixo custo (low cost). Apesar da
resistência de algumas companhias, o Executivo vai insistir na ampliação do
capital estrangeiro para 100%, considerado o primeiro passo para trazer para o
país companhias aéreas que oferecem aos passageiros um serviço mínimo em troca
de um bilhete barato, que pode custar bem menos que uma passagem de ônibus. Em
contrapartida, o usuário não teria direito de despachar mala de graça — poderia
apenas levar uma bolsa de mão — nem lanche a bordo. Teria, ainda, de abrir mão
de algumas comodidades, como reservar assento, e de conforto, viajando em
espaços mais compactos e até em bancos que não reclinam. O check-in não seria
mais feito presencialmente.
TARIFA BAIXA, SERVIÇO MÍNIMO
O pacote de medidas proposto por um grupo de
trabalho, formado por representantes da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac),
da Secretaria de Aviação Civil e do Ministério dos Transportes, prevê, para
atrair as empresas low cost, que as companhias possam cobrar livremente excesso
de bagagem e emitir bilhetes transferíveis a outros passageiros (o que hoje não
é possível). Outra aposta é melhorar a infraestrutura dos aeroportos regionais,
de forma a também agradar aos parlamentares que barraram a política de céus
abertos na primeira tentativa no Senado. Isso porque as companhias de baixo
custo costumam operar em terminais secundários.
Enquanto isso, o governo reavalia o programa
da aviação regional, lançado pela presidente afastada, Dilma Rousseff, em 2012
e que não saiu do papel. A previsão inicial era de beneficiar 274 aeroportos,
mas o número deverá ficar entre 40 e 50, “mais factível”, segundo o ministro
dos Transportes, Maurício Quintella, que tem conversado com as bancadas no
Congresso, e com governadores e prefeitos, para definir as prioridades.
A abertura do setor aéreo ao capital
estrangeiro deverá ser tratada em nova medida provisória, tendo a aviação
regional como contrapartida. Além disso, entre outubro e novembro, a Anac
deverá publicar a resolução definitiva que trata das condições gerais do
transporte aéreo. Entre as medidas, está o fim da franquia obrigatória para
bagagem despachada. Diferentemente do texto colocado em consulta pública, a
mudança não será gradual, e sim posta em prática de uma única vez. No entanto,
será dado prazo de carência de um ano para que as empresas possam adaptar
sistemas e esclarecer os consumidores.
TRANSPORTE DE MASSA
De acordo com o ministro dos Transportes, não
haverá regras distintas para empresas de baixo custo e tradicionais. Todas
estarão sujeitas às regras gerais, como, por exemplo, prestar assistência aos
usuários em caso de atraso e cancelamento de voos, bem como pagar indenização
por desvio de bagagem. A orientação é reduzir a presença do Estado no setor,
com desregulamentação, para estimular a competição e reduzir os preços, a fim
de tornar o avião um meio de transporte de massa.
Ao ser indagado sobre a redução dos direitos
dos passageiros, o ministro do Transportes alegou que, “ao contrário”, o
usuário brasileiro passará a ter acesso a um tipo de serviço que não existe no
país. Segundo ele, 25% das pessoas que viajam de avião ganham entre um e dez
salários mínimos e não há opção de um serviço mais simples, com tarifas mais
baixas para esse segmento da população.
— O passageiro brasileiro precisa ter opção
de escolha, com que tarifa ele quer viajar, se quer ir em um voo mais simples
ou com mais opções, com transporte de bagagem e serviço de bordo, por exemplo.
Quem quiser viajar com uma mala de 23 quilos continuará tendo essa opção,
embora vá pagar mais caro. Se ele quiser simplesmente só se deslocar, o que
quer a maioria dos passageiros, ou uma faixa importante da população
brasileira, terá a opção de pagar uma tarifa mais barata. É o que acontece no
mundo — afirmou Quintella.
Ele acrescentou que as empresas low cost
sempre se interessaram pelo Brasil, mas não vieram por causa do cenário adverso
aos negócios.
COMBOS DE PASSAGENS
Para o diretor da Anac, Ricardo Fenelon, as
novas regras estão de acordo com o padrão internacional. Ele lembrou o fim da
barreira tarifária em 2001, que fez o volume de passageiros pular de 38 milhões
para 118 milhões em 2015, enquanto o preço médio do bilhete despencou em torno
de 50%.
— Isso faz parte do processo de
desregulamentação. Não significa que estamos defendendo as empresas, pois o
consumidor também ganha — disse Fenelon.
O secretário de Políticas Regulatórios do
Ministério dos Transportes, Rogério Coimbra, fazendo uma analogia com as redes
de fast food, disse que as companhias aéreas brasileiras estão acostumadas a
oferecer combos. Ele mencionou ainda como exemplo, por outro lado, o site Booking.com,
no qual o consumidor pode optar por hotéis com tarifas e serviços variados
(quartos com e sem café da manhã, tarifas não reembolsáveis).
— As empresas nacionais vendem combos de
passagens. O usuário não pode comprar só o sanduíche e o suco por um preço
menor, mas tem que levar a batata frita e pagar por isso — afirmou Coimbra.
O pacote de medidas para atrair as empresas
low cost cita, ainda, a necessidade de o governo federal apoiar um projeto do
Senado que limita a 12% o ICMS sobre o querosene de aviação, com como outra
proposta em tramitação na Câmara dos Deputados, que altera a Lei do Aeronauta,
substituindo horas fixas de jornada e descanso por um sistema de gerenciamento
de fadiga dos profissionais. Na nova MP do capital estrangeiro, o governo deverá
incluir a transferência do custo das tarifas de conexão para os passageiros que
fazem escalas e alterar o Código Brasileiro de Aeronáutica para transformar as
empresas, atualmente concessionárias, em autorizatárias, a fim de reduzir a
burocracia no setor.
NOVO MODELO DEVE SER
INFORMADO COM CLAREZA
Para especialistas em defesa do consumidor, o
aumento da concorrência no setor aéreo é necessário e muito bem-vindo, se
trouxer redução de preços e aumentar o leque de opções à clientela. A
preocupação, dizem, não é com a redução de conforto — como a suspensão de
marcação de assentos, serviço de bordo e check-in presencial —, mas sim com a
garantia de que haverá clareza de informação sobre o novo modelo da oferta para
o passageiro, qualidade e segurança.
— O consumidor tem que ser informado, por
exemplo, de que se não fizer o check-in pela internet poderá pagar multa. E a
qualidade do atendimento e, obviamente, a segurança, independentemente de a
empresa ser de baixo custo, têm de ser garantidas — afirma Maria Inês Dolci,
coordenadora institucional da Proteste.
Ricardo Morishita, professor de Direito do
Consumidor do Centro Universitário de Brasília, diz que é preciso ainda
distinguir o que é conforto de assistência, em casos de atrasos e suspensão de
voos, por exemplo:
— Trocar conforto por um preço mais acessível
é uma liberdade de escolha. O consumidor só não pode ser surpreendido, ele tem
de saber o que está comprando. A assistência é de longe muito mais preocupante
que tudo isso. São naturezas diferentes, o primeiro tem relação com utilidade,
o segundo com a proteção e a reparação ao consumidor. São regras já postas e
que devem ser respeitadas, que asseguram a dignidade do consumidor e reconhecem
a sua vulnerabilidade.
PASSAGEIROS ABRIRIAM MÃO DE
CERTOS CONFORTOS
As mudanças propostas para baratear as
passagens aéreas, que chegariam a competir com um bilhete de ônibus, dividem os
usuários. Enquanto a troca do check-in no balcão da companhia pelo serviço
eletrônico não encontra ressalvas entre os passageiros, muitos não aprovam a
ideia de não ter poltronas reclináveis. Se, por um lado, quem viaja sozinho e
por períodos curtos abriria mão facilmente de bagagens despachadas
gratuitamente e lugares marcados, o fim dessas comodidades não é bem-visto por
famílias que voam juntas.
Para a engenheira Liliane Maciel, as medidas
seriam positivas, pois aumentariam a competitividade entre as empresas. Ela
alerta, no entanto, que não poderiam afetar a qualidade de serviços que não são
diretamente ligados ao consumidor, como a manutenção dos aviões:
— Cada passageiro escolheria segundo sua
necessidade.
Quando morou fora, o empresário Marcelo
Pizzato usou muito as low cost. Mas ressalta que, se o preço do bilhete é
baixíssimo, o passageiro pode ser surpreendido, na hora do embarque, com
tarifas que custam o dobro da passagem, se tiver de despachar a mala ou pagar
seguro para transportar um equipamento.
Preço
alto para pouco uso
O
empresário curitibano Guilherme Tissot conta que faz pelo menos uma viagem por
semana a trabalho para o Rio ou para São Paulo. E, nessas pontes aéreas,
normalmente leva apenas uma mochila.
—
Não despacho bagagem. Poder pagar menos por abrir mão de uma comodidade da qual
não usufruo, como já ocorre em muitos países, seria muito interessante. Como
são viagens curtas, também não costumo consumir nada a bordo, não faço questão
do serviço.
A bagagem que sai cara
Viajando
com o marido, Marcel Amorim, e os três filhos, a odontóloga Nívea Almeida diz
que aceitaria abrir mão de algumas comodidades, caso a passagem fosse oferecida
por um valor bem menor. A questão da bagagem, no entanto, a preocupa:
—
Poderia ficar sem o serviço de bordo ou o check-in. Mas, como nossa família é
grande, pagar para despachar as bagagens acabaria saindo muito caro.
Reclinar é o básico
O
farmacêutico José Carlos Almeida e sua mulher, a médica Rita Mostroni, viajam
muito a lazer. Ele diz que abriria mão da poltrona reclinável em trajetos curtos.
Já ela admite que não aceitaria em viagem alguma.
— O
lugar marcado não faz diferença, e já fazemos o check-in pela internet. Abrir
mão desses serviços não seria um problema. Mas a poltrona reclinável é o
básico, não dá para ficar sem — comenta Rita.
Só em trajetos rápidos
A
engenheira Liliane Maciel viaja sempre nas férias e diz que abriria mão do
atendimento pessoal no check-in — que já está acostumada a fazer pela internet
— e do assento previamente marcado. Mas, no caso das viagens longas, ela não
aceitaria ficar sem o serviço de bordo nem abriria mão do conforto da poltrona
reclinável:
— Só
ficaria sem esses serviços em viagens muito rápidas.
ARTIGO:
DESAFIOS E OPORTUNIDADES
por Respício Espírito Santo Jr, Professor de
Transporte Aéreo da UFRJ
Várias pessoas acreditam que o transporte aéreo é um setor especial da economia. Por isso demandaria atenção igualmente especial, uma vez que encerraria elementos de ser um “serviço essencial” e guardaria relação à “soberania” e à “segurança nacional”. Eu não estou no grupo que pensa assim. Afinal, todo e qualquer setor tem suas características próprias, não raras vezes únicas.
Além disso, acredito que vários outros
setores são muito mais essenciais e de natureza “estratégica”. Exemplos:
saneamento (água potável, esgoto tratado), saúde, educação, energia (geração,
transmissão), telecomunicações e agronegócio são, na minha visão, muito mais
“estratégicos” e “essenciais” que o transporte aéreo.
Alguém acredita que viajar de avião de São
Paulo para Fortaleza, por qualquer motivo que seja, é mais importante que ter
educação, saúde, água filtrada e limpa, esgoto tratado e energia elétrica em
casa?
Uma pausa: sim, o transporte aéreo é muito
importante para a sociedade brasileira e para o funcionamento do mundo moderno;
isso é inegável. Mas daí a ser visto e tratado como algo “único” e merecedor de
atenção “especial” já vai uma distância sem par. Nesse sentido, se temos
capital estrangeiro livre nestes setores mais “estratégicos” e “essenciais” que
o transporte aéreo, qual o problema termos liberdade total para o capital
estrangeiro nas empresas aéreas brasileiras? Ora, esse capital vai gerar
empregos e pagar impostos no Brasil, seguir as leis brasileiras, ser fiscalizado
pelos devidos entes reguladores.
Como se não bastasse, precisamos de muito
mais concorrência: o país tem hoje quatro empresas dominando mais de 97% de
toda a movimentação de passageiros. Há dezenas de ligações servidas por uma
única companhia. Há centenas de ligações que não são mais servidas por nenhuma!
Em resumo: precisamos de novas empresas aéreas!
Além disso, precisamos de novos modelos de
negócio, que desafiem o status quo que temos hoje aí. Modelos como os de
“ultrabaixo custo” de Ryanair, Spirit e Scoot teriam campo fértil no Brasil e
aumentariam significativamente a base de clientes na sociedade brasileira.
Como se não bastasse, precisamos de empresas
verdadeiramente de foco e atuação regional, que atuem exclusivamente no
interior do país. Ou alguém acredita que temos empresas aéreas regionais de
fato operando no Brasil? Assim como em outros setores, quebrar paradigmas
regulatórios é fundamental no transporte aéreo. É essencial para abrir
oportunidades de negócios, diversificar os modelos existentes, aumentar a
concorrência, beneficiando a sociedade como um todo.
(Fonte : Jornal O Globo / Imagem divulgação)
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