segunda-feira, 27 de junho de 2011

O CHEVAL QUE VEM DOS VINHEDOS DE MALBEC

A noite começa com Cuvée Dom Pérignon 2000. Das taças emerge o clássico perfume de pinot noir associado a chardonnay. Estamos no "vine loft" do Cheval des Andes, ao pé da Cordilheira. A "casa de recepção", envidraçada, autoaquecida, ao mesmo tempo luxuosa e rústica, destaca-se no altiplano. Temperatura de 7°C, a umidade do ar em 28%, ventos de quatro quilômetros por hora.
Não chove há três meses e este é um momento-síntese da região em que a precipitação média não ultrapassa os 220 milímetros anuais. A pouca água vem do degelo das montanhas num sistema de canalização introduzido pelos índios huarpes que habitaram a região até o século XVII, de quem os colonizadores espanhóis tomaram as desérticas terras e também a tecnologia de irrigação. A água hoje é controlada pelo Departamento General de Irrigaciones, um órgão estadual que multa os responsáveis por desperdício.
Esta é a terra do malbec e envolvem-nos vinhedos escurecidos e rochedos misteriosos. Aqueles estão ao norte, a leste e ao sul. A oeste, o paredão dos Andes, a mudar de cor, de formato e até de lugar, conforme o desenho das nuvens e de suas sombras. A lua cheia, que, como o vento, surgiu no horizonte pelo lado ocidental, parece maior, mais alaranjada, do que em qualquer outro lugar.
Envelhecido oito anos antes de apresentar-se ao mercado, o champagne francês acompanha o "amuse bouche" de lagostinos em crosta de coco e espuma cítrica, creme de cenoura defumada e brioches de pistache com moela bovina crocante.
Dom Pérignon fez as honras da casa, deu as boas-vindas - e saiu de cena. A noite agora pertencerá ao Cheval des Andes 2007.
Boa e sedosa textura, vigoroso no sabor, violáceo na cor, o Cheval des Andes 2007 só estará no mercado no início do ano que vem, com preços que serão os mais altos da produção argentina de vinhos. Esta noite, portanto, é de pré-estreia. E para ela foram convidados oito jornalistas brasileiro(a)s e duas mexicanas, numa programação que se estenderá por mais três dias e noites.
Servido com o primeiro prato de resistência -gnocchi de beterrabas em tubo crocante de provolone, beterrabas baby queimadas e brotos também de beterraba - o "2007" é fiel às suas origens: a associação da francesa Château Cheval Blanc (179 anos de vida), de Saint-Émilion, Bordéus, com a trintenária Bodegas Terrazas, estabelecida no distrito de Vistalba, nos contrafortes dos Andes mendocinos. Agrônomos e enólogos franceses e argentinos supervisionam o cultivo dos vinhedos que cercam o local onde jantamos.
Cheval Blanc e Terrazas pertencem à LVMH, uma teia de empresas multinacionais em que se destacam Louis Vuitton - de moda, artigos de couro, perfumes - e Moët & Chandon-Hennessy, com suas marcas de fama mundial como o vinho Château D'Yquem, conhaque Hennessy VSOP, vodca Belvedere e champagnes Veuve Cliquot e Dom Pérignon - por isto, o último abriu os trabalhos da noite.
Pierre Lurton, o enólogo que chefia a produção do Cheval Blanc na França - e também do D'Yquem - está presente e expõe as virtudes do irmão local. Nicolas Audebert, responsável pela operação argentina, destaca a diferença entre o quase bicentenário Cheval bordalês e o contemporâneo Cheval andino. Este tem malbec. O Cheval francês é basicamente uma "assemblage" de merlot, entre 55% e 60%, e cabernet franc (de onde, mesclado com o sauvignon blanc, derivou o cabernet sauvignon), de 40% a 45%. No Cheval argentino, o merlot cede a preponderância ao malbec. A ele se juntam uns 40% de cabernet sauvignon e algo como 4% de petit verdot. "Malbec é o violino nesta orquestra", diz Lurton. Ergue a taça, admira-a contra a luz, sacode-a lentamente e, satisfeito, aspira seu buquê. É o maestro de uma orquestra afinada.
Cheval des Andes 2007 já está maduro e em condições de consumo imediato, assegura Audebert. O prato seguinte, porém, comprova que, com o passar dos anos, o "2007" pode ostentar potencialidades. Chega à mesa uma degustação de carnes de novilha em três cozimentos: carpaccio de filé, bloque de entrecôte e cubos de ossobuco. Para umedecer o palato, Cheval des Andes 2006. Percebem-se de imediato o equilíbrio dos taninos e a elegância da fruta madura - framboesa e amoras, diriam os críticos. É de se concluir, portanto, que, se conceder mais um ano ao "2007", ele pode chegar à excelência do "2006". Aliás, o "2007" já pareceu ter melhorado neste segundo prato. O pouco que restava do "2007" na taça que acompanhou os gnocchi de beterraba melhorou de performance quando associado às carnes - equívoco de harmonização do chef, talvez.
O terceiro prato foi o da consagração do Cheval des Andes e de sua durabilidade. Serviu-se o da safra 2002, para o rolê de cabrito em cocção lenta, batatas queimadas recheadas com creme de chimichurri e canelone de hongos silvestres. Este Cheval des Andes nove anos cumpre tudo que o marketing prometia em virtudes para o "2006" e prevê para o "2007". Não exageram os resenhistas que atribuem ao " 2002" adjetivos como "potente mas não agressivo", "redondo e sedoso", "muito elegante e fino". Em verdade, o Cheval des Andes, não importa a safra, é produto de destaque da vitivinicultura argentina e faz jus ao preço que por ele se cobra nos Estados Unidos, em torno de US$ 80. Exagero é seu preço nas delicatessen brasileiras: R$ 300, ou mais, apesar do Mercosul. Também não é regionalismo dizer que o "2002" se aproxima do padrinho Cheval Blanc, pois avaliações independentes na Europa e nos Estados Unidos atribuem a ambos avaliações acima de 90 pontos, com leve vantagem para o francês.
Se o saboroso cabrito pareceu algo pesado para o adiantado da noite, a maciez se restabeleceu a seguir, com o dourado intenso, fresco e leve, do Terrazas de Los Andes Afincado Tardío Petit Manseng, vinho de sobremesa que acompanhou a "degustação final de sabores": semifreddo de chocolate branco, crême brulée de maracujá e grãos de lichia. Petit Manseng, uva quase desconhecida, originária dos Pirineus, é cultivada pela Terrazas em apenas quatro hectares na Finca El Yaima, 1.000 metros de altitude, perto de Mendoza.
Na manhã seguinte, um sol de 15°C alonga os horizontes para além da neblina diáfana e explica porque a região se chama Vistalba. Os vinhedos se mostram enfileirados, a descansar da colheita terminada na primeira semana de maio. Aos rés do chão já aparece a segunda florada. Alguns poucos bagos de uva ali ficarão até apodrecer ou virar comida de pássaros - a segunda florada não dá bom vinho. As folhas, secas e azinhavradas, vestem o uniforme do outono numa região em que as estações são rigorosamente como a natureza as criou, ajustadas ao tempo do repouso, do brotar e podar, do florescer, amadurecer e colher.
Aqui, em 38 hectares, se cultivam malbec, cabernet sauvignon e petit verdot, exclusivamente para o Cheval des Andes. Ao lado da "vine loft" do jantar de ontem à noite, há um campo de polo e uma partida entre duas equipes da própria Terrazas e alguns reforços vindos da alta sociedade de Mendoza. Enquanto o jogo se desenvolve, servem-se bebidas e hors d'oeuvre. Coquetel de champagne Chandon Rosé, morangos, conhaque Hennessy, sal, pimenta e açúcar, preparado e batido, um a um, pelo chef Marcos Zabaleta. Logo depois, Chardonnay Cuvée Reserve Varietal com um prato quente de caldo de vieiras, legumes e pimenta.
Eram 11h30 e os aperitivos foram tão bem recebidos que ninguém mais prestou atenção ao jogo de polo - de resultado desconhecido até hoje. Mesmo porque, logo depois, só se falou de malbec, a uva que se tornou moda internacional e que "The New York Times", com seu cacoete catalogador, descreveu como "a grande novidade da Argentina desde o tango". As relações da Argentina com malbec, porém, são mais antigas. No início do século XX, o vinho que italianos, espanhóis e "gauchos" bebiam enquanto ensaiavam num "boliche" da Boca os pioneiros passos do tango, homem com homem, tinha algo a ver com malbec.
Malbec, todos sabem, não é autóctone na Argentina. Era secularmente cultivado na França até que, por volta de 1880, procedente dos Estados Unidos, a praga do filoxera se disseminou pela Europa e devastou todos seus vinhedos, inclusive os de malbec. O minúsculo inseto suga especialmente a seiva da raiz da vinha e é pelo êxito desse ataque que consegue sobreviver. Uva e vinho europeus só se recuperariam da debacle quase um quarto de século depois, com o enxerto das mudas de suas castas nobres com uma plebeia raiz resistente à praga, também vinda dos Estados Unidos. A uva isabel, que imigrantes italianos trouxeram para o Rio Grande do Sul era de origem americana, tão resistente à filoxera quanto incompetente para a produção de bom vinho.
A Argentina não precisou recorrer a enxertos. Cinco ou dez anos antes de o filoxera chegar à Europa, mudas de malbec, trazidas, segundo se diz, pelo engenheiro Michel Pouget, chegaram à Argentina e foram semeadas na região de Mendoza. E ali se desenvolveram normalmente, embora carentes de bom trato e adequada técnica de vinificação. Daí para os dias de hoje, o argentino tomou muito vinho, chegou à performance anual de 90 litros per capita nos anos 40. O consumo foi baixando para 45 litros em 1970 e hoje estaria por volta de 27 litros - sobre inflação e tudo o mais, não confie muito nas estatísticas argentinas...
Mas há um dado confortável. "O consumo de vinhos finos nunca baixou", diz Hervé Birni-Scott, diretor geral da Terrazas. Caiu foi o consumo do vinho ruim, só tragável se ajudado por um cifão de água com gás na mesa dos almoços de domingo. Nos anos 90, as plantações de malbec começaram a crescer e os grandes produtores a importar máquinas e enólogos europeus para desenvolver-lhe a qualidade. E a plantar em terras mais altas. E aí Moët & Chandon entra na história. Ela já produzia espumantes na região e, em 1990, foi subindo os contrafortes dos Andes e comprando terras em platôs (terraços, daí o nome Terrazas) de solo franco-arenoso, por onde as raízes, e também a água, podem circular livremente, sem pedras para tolher seu movimento. "O vinho das alturas tem mais vida, frescor", diz Birni-Scott. Em Mendoza, Terrazas plantou malbec entre 1.000 e 1.100 metros acima do nível do mar (Vistalba está a 1.067 m). Videiras plantadas em 1929 foram encontradas e conservadas à mesma altitude numa das esquinas de Compuertas, onde se produz o Terrazas Afincado Malbec.
E os vinhedos se estenderam de Cruz de Piedra (800 m) a Tupungato (1.200 m). Como outros produtores, Terrazas rompeu os limites de Mendoza e foi para Cafayate, mais ao norte, na Província de Salta, e lá, a 1.800 metros, plantou a uva torrontês, derivada da moscatel de Alexandria e a "creolla chica", que missionários espanhóis trouxeram de sua terra.
A tarde e a noite de quarta feira, como manhã, tarde e noite de quinta, se sucederiam em experiências de muita comida e melhor bebida. A 20 quilômetros, cercada por álamos, plátanos e lírios brancos, está a sede de Terrazas, uma casa de arquitetura colonial à entrada da vinícola, onde a uva é processada. Ali, a degustação foi do Afincado Malbec, o segundo vinho mais nobre da dinastia Terrazas (em torno de R$ 240 no Brasil). Afincado, marca registrada, significa "enraizado", produzido num mesmo e exclusivo "terruño" (terroir), no caso, Compuertas. "Finca" seria traduzido em Portugal como "quinta"; no Brasil, sítio, chácara.
O aroma do Malbec Afincado 2006, uma sugestão de passas de ameixa e figo, compôs agradável parceria com o filé de novilha com bloco de milho grelhado e molho de chimichurri. O mesmo malbec, desta vez 2007, se revelaria harmonioso até com o salmão na chapa, com purê de batatas ao limão, servido na jantar de despedida, quinta-feira, no restaurante de Francis Mallmann - conhecido em São Paulo, onde dirigiu a cozinha do Figueira Rubaiyat quando de sua inauguração há dez anos -, uma casa acolhedora, anexa à Bodega Escorihuela, que ali funciona desde 1884, no centro de Mendoza.
A intenção era demonstrar que o malbec é bom companheiro também de peixes e isso ficou comprovado com um produto menos pretensioso, pelo menos no preço (R$ 70 no Brasil), o Malbec Reserva 2008, servido com atum grelhado. A identidade da casta revela-se ao se chegar o nariz à taça: é um malbec, com certeza. E perfeitamente adaptado ao peixe.
Foram dias de dedicação quase exclusiva a provar ou a relembrar os produtos de Terrazas e a usufruir da hospitalidade que incluiu o Park Hyatt Mendoza, hotel cinco estrelas (com diária para casal de turistas a US$ 254 e cassino a funcionar já às 10 da manhã), à frente da praça Independência, no centro de uma plácida cidade de 115 mil habitantes a 830 metros de altitude.
- Qual a razão do convite e de tantas mordomias? Terrazas planeja alguma ofensiva especial no mercado brasileiro? - foi a pergunta a Hervé Birni-Scott.
- Nada em especial. O objetivo é mostrar a boa uva e o bom vinho. Fazemos isso todos os anos. Diria que é um trabalho de educação em favor do vinho argentino e, em particular, do nosso.
O propósito de Terrazas, evidentemente, é o de promover no Brasil - e no México - os seus vinhos de maior prestígio: Cheval des Andes e os da linha nobre de malbec, Afincado e Reserva, vendidos apenas em "delicatessen". Mas, se houver investida em direção a um mercado mais popular, esta será em torno de um vinho até aqui pouco divulgado fora da Argentina, o branco fresco e leve Torrontés. Não foi destaque em nenhuma das refeições servidas, mas só esteve ausente na noite do Dom Pérignon. Em todas as outras o Reserva Torrontés 2010 precedeu o antepasto, numa insinuação de que pode ser apreciado em voo solo ou como aperitivo. "Torrontés se bebe jovem", disse Diego Ribbert, enólogo argentino de 33 anos entusiasta do vinho de Cafayate.
Prevendo sucesso global, um crítico do "New York Times" já definira o torrontês como "suculento, frutado, milionário", e chegou a indagar-se se não se trata da "versão branca do malbec".
Em português quase perfeito, o argentino Lucas Lowi, gerente de desenvolvimento de negócios de Terrazas, afirmou: "O brasileiro começa suas refeições pedindo vinho tinto. Com o calor que faz do Rio para cima, o recomendável seria um vinho branco, suave e fresco como o nosso Torrontés".

(Fonte & foto : Jornal Valor Econômico)

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