quinta-feira, 24 de março de 2011

ECLÉTICOS, HARMOZINAM COM QUALQUER REFEIÇÃO


Vinhos Madeira: Antes desprezados pelos importadores brasileiros, hoje já existem boas opções disponíveis no mercado

Há certas bebidas impossíveis de serem reproduzidas fora de suas regiões de origem. Fatores históricos e culturais associados a condições naturais do local são tão marcantes que impedem até imitações baratas. Se isso garante individualidade e, muitas vezes, reconhecidas virtudes, nem sempre lhes é dada a devida atenção. Um bom exemplo é o Vinho Madeira, que, tanto quanto o Porto, é um vinho fortificado produzido em Portugal. No entanto, em condições de clima e solo, e com um processo de elaboração muito peculiar, que lhe confere características únicas.
Situada a cerca de 1.000 km a sudeste de Portugal e a 700 km da costa do Marrocos, a ilha da Madeira era parada obrigatória no século XVII para que os barcos que navegavam pelo Atlântico se aprovisionassem de água e vinho. Posicionadas nos porões dos navios, as barricas atingiam altas temperaturas. Alguns desses vinhos acabavam retornando e, surpreendentemente, voltavam melhores, fenômeno que, verificou-se, estava associado ao calor que acelerava sua evolução.
A descoberta incitou produtores e negociantes a enviar tonéis de vinho para longas viagens marítimas com o objetivo de valorizá-los. Nascia assim o "Vinho de Roda" ou "Vinho Torna Viagem". Tempos depois, tais condições foram passadas para as adegas, transformando-se no processo industrial de elaboração dos Madeira, que, com poucas mudanças, é empregado até hoje: as uvas são desengaçadas e encaminhadas para as cubas de fermentação, onde, depois, num certo momento, vai receber aguardente vínica que eleva a graduação alcoólica para algo entre 17 graus e 20 graus, interrompendo imediatamente o processo. O momento da adição da aguardente é que vai definir o grau de doçura do vinho - se isso for feito cedo (mais ou menos no meio do processo de vinificação) sobra mais açúcar sem fermentar, ensejando um vinho doce; a interrupção no final resulta num Madeira seco; situações intermediárias dão, por conseqüência, meio secos ou meio doces. São, de fato, as quatro classes de Vinho Madeira.
Até aí, em tese, nada o distingue de outros vinhos fortificados. Seu diferencial começa a tomar forma com o sistema de envelhecimento, que se resume em passar o vinho recém-elaborado por uma fase de calor. Dois processos são empregados, o "por estufagem" e o "por canteiro", com resultados qualitativamente distintos.
No primeiro, os vinhos permanecem durante cerca três meses em cubas de inox ou concreto, dotadas de serpentinas por onde circula água a uma temperatura de 45 a 50 graus centígrados. Estima-se que este "cozimento" antecipe em três anos seu envelhecimento natural. Mas não sem conseqüências: os vinhos se oxidam e adquirem uma sensação "queimada", razão pela qual é comum correção com adição de caramelo. Novas técnicas, contudo, estão sendo empregadas por alguns produtores, constituindo-se basicamente na adoção de cubas de inox com camisas externas para "esquentar" o vinho, que criam um efeito natural de circulação interna, minimizando o problema. Em todo caso, a estufagem é aplicada aos Madeira mais baratos, destinados a serem vendidos jovens.
No sistema de "canteiro", utilizado para os vinhos melhores, eles evoluem e se oxidam em tonéis situados nos pisos mais elevados dos depósitos, onde as temperaturas são mais elevadas, permitindo, assim, acelerar sua evolução - algo similar ao que acontecia nos porões dos navios. Estes só podem ser comercializados após, no mínimo, três anos em madeira.
No fundo, textura macia, notas fortes de oxidação e boa acidez são, em maior ou menor grau, comuns a todos os vinhos da Ilha. São características que junto com os quatro graus de doçura existentes entre os Madeira - seco, meio seco, meio doce e doce - definem a ocasião em que devem ser consumidos e que devem ser levadas em consideração na hora de harmonizá-los com a comida. A capacidade de se compatibilizar com os mais diferentes pratos é uma da suas grandes virtudes. São menções que necessariamente constam dos rótulos desses vinhos caso uma das quatro castas nobres não seja citada. Para todos os efeitos, Sercial é sinônimo de seco, Verdelho e Terrantez de meio seco, Bual de meio doce, e por fim, Malvasia (ou Malmsey, na versão inglesa) de mais doce na escala.
Em linhas gerais o Sercial, além de ser o mais seco é também o que tem a acidez mais elevada, o que recomenda sua utilização como aperitivo, acompanhando frutas secas salgadas, caso das amêndoas, em entradas de embutidos e peixes defumados (arenques), sopas fortes e bisques. Na área dos queijos, os de cabra são boa pedida.
O Verdelho, valendo para o hoje raro Terrantez - restam desta variedade pouquíssimos hectares, o que, pela sua escassez e qualidade, deu origem ao ditado "As uvas Terrantez, não comas nem as dês, para vinhos Deus as fez" -, tem uma ponta de açúcar a mais que lhe abre um bom campo nas comidas condimentadas, gênero thai e indiana, porém, antes disso, nas entradas, como presunto cru, e (casa perfeitamente) com uma sopa de cebola. Esse estilo de Madeira combina com foie gras e é menos invasivo do que, por exemplo, um Sauternes. No final da refeição, ou ainda para passar o tempo num final de tarde, são ótimas companhias para frutas secas como castanhas, figos e tâmaras.
O grupo dos mais adocicados começa com o Bual e segue num grau acima com o Malvasia. O primeiro, mais delicado, pode escoltar entradas, e, assim o foie gras, voltando depois do prato principal nos queijos mais fortes, caso dos azuis, do taleggio e do epoisses, e emendar em sobremesas bem variadas, entre elas tarte tatin, pudins, crème brûlée e tiramisú. Já o Malvasia restringe um pouco os queijos - melhor ficar com os azuis - e é ótima opção para sobremesas mais caramelizadas e aquelas à base de chocolate.
A Ilha da Madeira vive nos últimos tempos muito em função do turismo. Para dar conta dessa leva cada vez maior de gente que busca seu clima agradável e suas águas límpidas para passar férias, muito concreto ocupou lugar dos melhores vinhedos. Atualmente restam poucos hectares destas castas nobres. Franco domínio exerce a Tinta Negra Mole, casta que ocupa em torno de 85% da superfície plantada de uvas viníferas e não tem o mesmo padrão de qualidade. É sobretudo usada para mesclas, compondo, inclusive majoritariamente, até meados da década de 90, Madeiras que ostentavam no rótulo uma das cinco castas nobres (para enganar consumidores). Alguns produtores estão agora investindo nela, acreditando em seu potencial se for bem conduzida. Invariavelmente, os Madeira que não ostentam uma das cinco castas nobres são produzidas com ela, devendo, como citado acima, especificar qual o grau de doçura do vinho.
Há apenas oito produtores de Madeira, que não têm vinhedos próprios - exceto basicamente a Henrique & Henriques, que tem ao redor de 10 hectares -, comprando dos mais de 2.000 vinhateiros da ilha, em sua grande maioria famílias que cultivam pequenas áreas de vinhas. Cinco deles estão representados no Brasil (o HM Borges, embora seja distribuído hoje com exclusividade pela Adega Alentejana, ainda tem alguns de seus vinhos, fruto de compra antiga, vendidos pela World Wine), o que reflete uma mudança de postura dos importadores brasileiros, que pouco se interessavam - e pouco trabalharam - por este gênero. Os vinhos disponíveis estão na tabela.
Podem comprar sem medo. Além de serem vinhos ecléticos, prazerosos e diferenciados, duram uma eternidade. Mais que tartarugas.

(Fonte : Jornal Valor Econômico / imagem divulgação)

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