segunda-feira, 21 de junho de 2010

SEGREDOS PARA RESISTIR, BEM, AO TEMPO


Restaurantes centenários são, em qualquer parte do mundo, marcos na história de uma cidade. Assim acontece com o La Tour D ' Argent, em Paris, com o Tavares, em Lisboa, e o Botín, de Madrid. Por aqui é lugar comum dizer que os brasileiros não cultivam a memória. Talvez a questão seja um pouco menos óbvia do que parece. "Podemos contar nos dedos as casas que sobrevivem ao tempo. São pouquíssimas em todo o mundo", diz Belarmino Iglesias, dono da Rubaiyat, a mais longeva das churrascarias paulistanas.
A questão é que não se trata apenas de preservar símbolos por uma simples questão cronológica. Antiguidade por antiguidade não faz sentido. Ou o restaurante é capaz de manter a qualidade ou a soma dos anos perde seu significado. O próprio La Tour D ' Argent (1582) já teve três estrelas Michelin e agora ostenta apenas uma. Sinal de que a permanência de um nome é uma delicada equação entre a manutenção do que é bom, a capacidade de renovação e fidelidade dos clientes.
Em dezembro do ano passado, São Paulo perdeu um de seus maiores símbolos gastronômicos, o Ca ' d ' Oro, precursor da alta gastronomia na cidade, que criou um padrão de cozinha italiana diferente da simplicidade cantineira. Era formal e recomendava o uso de paletó. Durou 54 anos e fechou nostálgico, sem clientela. Dizem que foi vítima da decadência da região, junto ao centro.
A explicação não satisfaz. Como entender, então, que o La Casserole, apenas um ano mais jovem, francesão e tradicional, continua a bombar todo o fim de semana, em pleno Largo do Arouche? A informalidade e a capacidade de manter os clássicos num clima de renovação pode ser uma pista. Afinal, quem pode pagar por vinhos e ingredientes caros quer ter ao menos o direito de se vestir como bem entende.
A decadência do centro é um problema real para a restauração. Foi ela que levou aquele que leva o título de restaurante mais antigo da cidade, o Carlino (1881), a abrir uma filial em Perdizes. Mas o Carlino está no terceiro dono, já fechou, ressurgiu em outro endereço e há sete meses abriu uma filial. Antonio Carlos Marino, proprietário desde 1974, divide o comando com a mulher e os filhos.
A filial da Rua Traipu, nas Perdizes, é imensa e tem ares de churrascaria. Na entrada há uma mistura de fotos de antigos cantores de ópera, flashes do programa de Ana Maria Braga, onde Marino compareceu, e algumas criticas pouco entusiastas à sua comida. Fora meia dúzia de fotos de Lucca, cidade natal do fundador, emolduradas na parede, nada mais lembra que aquela é uma casa italiana.
O cardápio continua centrado na Toscana e mantém dois pratos ancestrais: coelho com funghi secchi, à moda luquesi, e cordeiro cacciatore. Ao comprar o restaurante, Marino conta que o ex-dono só lhe pediu uma coisa: "Faz o que você quiser, menos esfiha ou quibe".
Dizendo-se "da antiga", Marino acompanha movimentos de gastronomia, considera Ferran Adrià "um gênio", mas não entende como há gente disposta a pagar tanto por ingredientes tão populares. "Como se chama mesmo aquela maria-mole? Quiabo, jiló? Como pode alguém sair de casa para comer aquilo?", pergunta.
Mudanças de donos e de endereços também fazem parte da história do Freddy, o francês que está completando 75 anos. Aberto no centro, foi para Santana e depois para o Itaim. Continua no mesmo bairro, mas em 2007 deixou a Praça Dom Gastão Liberal Pinto e foi para a Pedroso Alvarenga.
Há 11 anos, quem leva o nome adiante é uma empresária que freqüentava o salão ainda criança: Priscilla Simonsen. Sua estratégia tem sido manter o mesmo cardápio, quase sem alterações, apesar de renovar louças, elementos da decoração e incluir vinhos de bom custo/benefício numa adega com três mil garrafas. "Apesar de alguns críticos reclamarem que nada muda no cardápio, acho que é isso que nos segura", diz ela.
Pratos clássicos de bistrot como cassoulet, bife bourguignon e miúdos são responsáveis pela clientela mais antiga do Freddy. Frequentadores mais jovens - muitos conquistados com a mudança de endereço - preferem filé chauteabriand, steak poivre ou molho mostarda. "Nos restaurantes modernos as porções são menores e até mais bonitas de olhar, mas aqui mantemos o sabor e a fartura", explica a dona.
Só critérios de antiguidade não bastam. Sempre que alguma data festiva agita São Paulo alguém lembra dos camarões à provençal do La Paillote, que há 57 anos são servidos da mesma forma no restaurante do Ipiranga. Acontece que um restaurante não se resume à comida. Ambiente, serviço e limpeza são detalhes importantíssimos.
Por conta disso, a chegada ao La Paillote desanima. A pequena casa de esquina tem entrada com paredes descascadas, carpete vermelho manchado, iluminação soturna e um ar fora do tempo. Criado pela família Valluis, o restaurante está nas mãos da terceira geração.
Apesar do que se vê, uma rápida pesquisa no google continua a dar a entender que os famosos camarões (R$ 125) e a marjolaine (bolo gelado com creme de leite, avelã, amêndoas e chocolate) estão entre os hits de São Paulo. Alguns dos antigos clientes reconhecem que o lugar está decadente, mas é como se tivessem pena de falar sobre o ocaso de mais um ícone.
A questão sucessória, mesmo em pequenas empresas familiares, é sempre um problema. "Enquanto o fundador está à frente tudo vai bem, porque ele não quer que sua obra morra", diz Belarmino Iglesias. "Se já é difícil passar esse empenho para a segunda geração, para os netos, nem se fala! Meus dois filhos me ajudam e conservo a esperança de que algum dos meus seis netos queira levar a bola pra frente".
Belarmino é um continuador (e renovador) da tradição paulistana do churrasco. Começou a trabalhar como auxiliar de garçom na churrascaria Cabana, da família de Massimo Ferrari, que já havia sido proprietária da Farroupilha, "a primeira grande churrascaria da cidade".
Em 1957, Belarmino participou da fundação da Rubaiyat, onde entrou com 10% na sociedade. Cinco anos depois, graças a um empréstimo bancário, tornou-se dono de tudo. Hoje, proprietário de um grupo que tem seis restaurantes entre Brasil, Argentina e Espanha, acredita que o grande desafio não é alcançar êxito com novidades, mas conseguir sobreviver ao tempo. "A restauração é muito dinâmica, evolui no dia-a-dia. Estou com 79 anos e não paro de aprender".

(Fonte : Jornal Valor Econômico / Foto Divulgação)

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