quinta-feira, 1 de abril de 2010

SOPA DE LETRINHAS E O AVANÇO DA PINOT NOIR



Algumas semanas antes da Prowein, feira internacional de vinho que se realiza anualmente em Dusseldorf e cuja edição 2010 terminou na semana passada, tema da última coluna, uma estudante da Universidade de Geisenheim me contatou por e-mail solicitando informações sobre as características do mercado brasileiro e as possibilidades de ter mais espaço para rótulos alemães, tema escolhido por ela para sua tese de final de curso. Na conversa que tivemos durante o evento, não pude deixar de apontar alguns obstáculos: a especialidade vinícola da Alemanha é a produção de brancos, gênero (incompreensivelmente, ainda) de pouco apelo no Brasil, sua associação com vinhos adocicados, rótulos difíceis de decifrar e memorizar e, de quebra, a imagem negativa que aquelas malfadadas garrafas azuis deixaram. Nada disso, no fundo, é segredo. Os próprios alemães sabem desses entraves e procuraram nos últimos tempos mudar e introduzir uma série de conceitos para tornar seus vinhos mais atraentes aos consumidores mundo afora. Contudo, o idioma não ajuda e interesses e pontos de vista não convergentes entre governo e membros da cadeia produtiva dificultam sua implementação. Apesar desses obstáculos, já se percebe um crescente interesse no Brasil pelos notáveis brancos da Alemanha, tanto que importadores brasileiros estiveram na Prowein contatando produtores de ponta locais. Quem sabe a tese da aluna alemã sensibilize os organismos oficiais de seu país a divulgar mais as virtudes de seus vinhos e ajude a descomplicá-los. Os interessados que quiserem sair na frente devem começar seguindo um princípio básico, que divide os vinhos alemães em quatro categorias: DeutscherTafelwein, a mais baixa delas (tafelwein significa vinho de mesa, o mesmo que "vin de table" na França). É uma mistura de vinhos de diversas regiões, elaborados com uvas de terceira categoria; Landwein, um pouco acima do tafelwein, tem indicação de procedência ("land" é área/zona), o que equivale a vinho regional; Qualitätswein, que precede uma das 13 regiões demarcadas - as dez principais são Ahr, Mosel-Saar-Ruwer, Mittelrhein, Rheingau, Rheinhessen, Nahe, Pfalz (ou Palatinato), Franken (ou Francônia), Baden, Württemberg -, e é sujeito a algumas regras, passando por um comitê que lhe concede um número de aprovação, o AP, e pode ser considerado um vinho sem pretensões para o dia a dia; e, finalmente, Qualitätswein mit Prädikat, onde estão necessariamente os melhores vinhos do país, embora isso não signifique que todos são ótimos. Estes também têm um número de aprovação. Os vinhos enquadrados na categoria mais elevada, a Qualitätswein mit Prädikat, são divididos em seis níveis, segundo o grau de maturação em que as uvas são colhidas. Em princípio, quanto mais maduras, mais doce é o vinho. Em escala crescente há o Kabinett, Spätlese, que significa vindima tardia; Auslese, fruto de uma colheita selecionada; Beerenauslese, bem adocicado, elaborado com uma seleção de uvas auslese; Eiswein, literalmente "vinho do gelo", em que a colheita se dá mais tarde quando a neve já caiu; e Trockenbeerenauslese, o mais doce de todos, é produzido a partir de uvas que amadureceram no pé até ficarem passas, ou secas (tradução de trocken), majoritariamente atacadas pelo fungo nobre, o botrytis cinerea. A primeira tentativa de simplificação foi introduzida em 2000 pelo órgão governamental responsável pelo setor, ao criar as designações Classic e Selection, que, mencionadas no rótulo, eliminariam outros termos e facilitariam a identificação da característica do vinho. A primeira dá a entender que se trata de um vinho seco (ou quase seco), elaborado com castas tradicionais permitidas e uvas colhidas em regiões demarcadas, dentro de um determinado padrão confiável de qualidade. Por sua vez, para entrar na categoria Selection as exigências são maiores, tendo reflexos na qualidade da uva e em seu manejo. Assim, a produção por parreira deve ser menor, o vinhedo de onde provieram os cachos tem de ser declarado, a colheita deve ser manual e o grau de açúcar residual mais baixo, o que determina que o vinho é (mais) seco. A rigor, essas duas classificações não resolvem o problema por inteiro, em particular por não garantirem que se trata de um vinho realmente seco, dúvida que invariavelmente ocorre nos Kabinett e Spätlese. Para tanto é melhor encarar aquele monte de consoantes e ver se em algum canto do rótulo está escrito a palavra "trocken" que quer, efetivamente, dizer "seco", e não se deixar enganar por "halbtrocken", que significa "meio seco".
Há mais de 100 mil viticultores na Alemanha e 75% deles não vinificam, vendendo suas uvas por quilo para terceiros. Os melhores vinhos vêm, sem dúvida, das vinícolas que têm vinhedo próprio, cuidam dele para extrair a melhor matéria-prima e com ela conseguem atingir um bom padrão de qualidade. Para identificá-los é preciso outra vez enfrentar aquela sucessão de consoantes e, com o auxílio de uma lupa, procurar no rótulo o termo "Gutsabfüllung", que denota que as uvas são da propriedade e que o produtor as colheu, vinificou e engarrafou. É o correspondente a "mis em bouteille au domaine" na França. Outra menção, "Erzeugerabfüllung", é empregada mais para vinhos de cooperativas. Negociantes de uvas e engarrafadores, uma categoria em tese inferior, são identificados com a palavra "Abfüller". Há, na verdade, um caminho bem mais fácil para entrar no maravilhoso universo dos vinhos alemães - desculpem, eu poderia ter encurtado a história e entrado direto nos "finalmentes". É procurar no lacre da garrafa ou, de forma mais discreta, no rótulo do vinho o símbolo de uma águia carregando um cacho de uva e as iniciais VDP, que designa a "Verband Deutscher Prädikats - und Qualitätsweingüter", associação que impõe regras bastante rígidas aos seus membros - hoje são cerca de 200, o que representa apenas 4% da área plantada - em busca de vinhos de padrão superior. Embora esteja comemorando este ano seu centésimo aniversário - é a mais antiga associação de vinícolas com vinhedos próprios -, só em meados da década de 80 a VDP começou realmente a estabelecer critérios de hierarquização de vinhas e normas que resgatassem a identidade dos vinhos e de suas regiões. Todavia, a dificuldade de conciliar opiniões e interesses internos, mais a discordância em relação à legislação oficial, fazem com que ainda haja um bom caminho pela frente para que o consumidor se sinta à vontade e saiba o que está comprando. Em todo caso, no que diz respeito a produtores, no VDP estão reunidos uma grande parte dos melhores rótulos do país e com relação à categoria e característica dos vinhos a possibilidade de erro é menor. É o que oferece a classificação Grosses Gewächs, status semelhante a Grand Cru de Bordeaux e cuja menção indica tratar-se de vinho seco - as letras "GG" significam o mesmo. Em outra escala, existe a Erste Gewächs, literalmente "premier cru", que designa um vinhedo de potencial elevado, mas não determina se o vinho é adocicado ou não. O logo, o número "1" com um cacho de uvas ao lado, pode estar no rótulo, contra-rótulo, ou mesmo impresso na garrafa, em particular para vinhos da região do Rheingau. Com todo esse apanhado e sabendo que as importadoras brasileiras, para não incorrer em erros passados, estão trazendo brancos secos, sobretudo rieslings das melhores vinícolas alemãs, restaria, dos empecilhos que chamei atenção na tese da estudante - os brancos não têm grande apelo no Brasil, sua associação com vinhos adocicados, rótulos difíceis de decifrar e a imagem negativa que resta das garrafas azuis -, um item apenas para que a Alemanha tivesse maior presença entre nós: a falta de vinhos tintos. Esse problema já não existe e, até certo ponto, de forma surpreendente. A Alemanha vem plantando cada vez mais uvas tintas ao longo das três últimas décadas, em particular a pinot noir, uma casta que tem hoje muitos adeptos e que sabidamente tem raríssimos casos de sucesso fora de sua região de origem, a Borgonha. Dados oficiais apontam que a área ocupada por uvas brancas representava cerca de 89% dos vinhedos germânicos em 1980, caindo para 63% em 2005. A pinot noir é atualmente a terceira uva mais cultivada, com 11,4% do total, logo depois da riesling (20%) e da müller-thurgau (14,1%). Não é de hoje que venho tentando me aprofundar no assunto pinot noir alemão. O alsaciano Serge Dubs, presidente da associação francesa de sommeliers, já me havia comentado positivamente há alguns anos e uma garrafa que ganhei de um sommelier da França me fez acreditar que a indicação procedia (seria difícil, aliás, imaginar que Dubs estivesse enganado). Tratava-se do Spätburgunder (nome da variedade borgonhesa na Alemanha) August Kesseler 2002, uma prestigiada vinícola familiar do Rheingau, região que apesar de ser reconhecida pelos seus belos rieslings - é, para mim, ao lado do Mosel, a zona de onde saem os melhores brancos dessa variedade - tem mostrado vocação para a pinot noir. No caso de Kesseler, é uma paixão antiga dele e de seus antecessores. Metade dos 20 hectares de vinhas da propriedade são ocupados por ela, com algumas parcelas beirando 70 anos de idade. Outra boa experiência veio pouco tempo depois com rótulos de Markus Molitor, desta vez do Mosel. A amostragem, entretanto, era pequena. A oportunidade para ter uma noção mais ampla do comportamento da pinot noir na Alemanha surgiu na recente ida à Prowein e me programei para visitar algumas vinícolas antes da feira. Meu foco era, em particular, a região de Ahr, que, a despeito de ser a mais setentrional entre as Denominações de Origens importantes da Alemanha, tem como especialidade a produção de vinhos tintos - afinal, quanto mais ao norte mais o clima desfavorável à cultura de uvas tintas. A explicação está nos vinhedos de encosta com exposição sul, que recebem melhor insolação, e ao solo xistoso que armazena o calor do dia e protege a planta do frio da noite. Esse tipo de solo, mais a paisagem com as parreiras plantadas em terraços, fazem lembrar a região do Douro, em Portugal. Aqui, porém, a inclinação é ainda maior e o aproveitamento chega a ser milimétrico, com patamares pequenos e desordenados, refletindo a preocupação de ocupar cada espaço para não desperdiçar nada do que o Sol pode oferecer. Entre visitas e vinhos degustados, ganha destaque especial o que é produzido por Werner Näkel, da Weingut (vinícola em alemão) Meyer-Näkel. A propósito, a associação com o Douro fica aqui mais reforçada: Näkel, e dois outros produtores alemães amigos, são proprietários da Quinta da Carvalhosa, que elabora os premiados tintos Campo Ardosa, vinícola situada naquela renomada região portuguesa. O bem-humorado e atencioso Werner Näkel oferece uma gama de pinot noirs bem homogênea, que chama atenção, em especial, pela fidelidade com que os vinhos expressam o caráter dessa casta tão caprichosa. É uma virtude, vale ressaltar, rara de se encontrar mundo afora. A impressão foi tão boa que resolvi testar se não era um pouco exagerada. Seguindo, como programado, viagem à Borgonha - é onde me encontro agora escrevendo este artigo -, levei algumas garrafas da Cuvée "S" safra 2007, para provar com quem domina o assunto. Em meio aos vários Chambolle Musigny degustados na visita a Christophe Roumier, meu produtor de referência na região, onde, inclusive, estavam presentes dois sommeliers franceses e um dono de restaurante, o pinot noir alemão passou no exame. Vá lá que não conseguiu se impor frente à nata do que existe no gênero, mas não fez feio. Falta-lhe a elegância e o refinamento que a casta atinge em sua região natal nas mãos de um produtor de primeira linha. Numa degustação às cegas passaria fácil por um borgonha - foi a opinião geral. Um grande elogio. Em termos de preço, dadas as difíceis condições de cultivo, teria preço aproximado ao de um vinho da Borgonha na categoria "villages" - Gevrey Chambertin, Nuits St Georges, Chambolle Musigny - de boa procedência. É uma boa opção e uma porta de (re)entrada (pela porta da frente) para os vinhos alemães no Brasil. A ousada escolha do tema da tese da aluna da Universidade Geisenheim faz sentido e não terá sido em vão.

(Fonte : Jornal Valor Econômico / Foto : img.mundi.com.br/.../Dusseldorf-photo3034-5.jpg)

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