quinta-feira, 11 de agosto de 2011

UMA ÉPOCA DE VISITA DE GRANDES ENÓLOGOS



Aproveitando a brecha existente no calendário vitivinícola de enólogos e produtores de fora, julho, no Brasil, é um dos meses pródigos em eventos de vinhos. Apesar de concordar e incentivar tais atividades por entender que proporcionam aos profissionais da área e aos consumidores - pelo menos parte desse universo - conhecer mais de perto o que existe no mercado, confesso ir a pouquíssimas. Mesmo tendo por norma não aceitar que me mandem amostras para provar, há outras maneiras de (tentar) me manter atualizado, seja em feiras ou mesmo comprando as garrafas, o que (ambas) faço habitualmente. É para mim bem mais interessante e objetivo ter um encontro com o responsável. Algumas oportunidades surgiram recentemente.
A primeira delas foi com Michel Rolland, consultor que tem uma imagem controvertida em função do filme Mondovino. Sobre isso, aliás, já me manifestei várias vezes, não só contrariando a tese que ele induz a vinhos padronizados e demasiado robustos, como ressaltando sua fundamental contribuição para a generosa oferta de bons vinhos que temos hoje, vindos de todas as partes do planeta. O trabalho que ele faz no Brasil com a Miolo não é diferente. Isso não desmerece a atuação e os méritos de Adriano Miolo, que tem a mente aberta para enxergar as vantagens de ter um assessor com tal expertise com quem possa trocar ideias - vinho não é uma ciência exata - e é competente para implementá-las. Pena que poucos produtores no Brasil tenham tal visão.
Vindo direto do Vale dos Vinhedos, Rolland passava por São Paulo, onde teria uma apresentação dos novos vinhos da Miolo. Havia passado o dia anterior reunido com a direção técnica da vinícola preparando os blends da safra 2011, tarefa que faz com extrema e quase inigualável habilidade. Eu já tinha informações sobre a excelência da safra deste ano, quando conversei em junho com Bruno Lemoine, um dos enólogos que trabalham com Rolland e a quem cabe acompanhar a Miolo. Mesmo jovens, as amostras do Merlot Terroir, Lote 43 e Sesmarias degustadas comprovam a qualidade da colheita, que, segundo Adriano e Rolland, permitiu alcançar padrão inédito, opinião que corroboro. As condições climáticas, em especial na Campanha, contribuíram muito - choveu só 50 mm na fase de amadurecimento das uvas -, mas o resultado não seria o mesmo sem o trabalho desde o início da consultoria de Rolland, em 2003.
Essa questão de vinhedos foi tema recorrente na conversa. Independentemente do cuidado no manejo das vinhas, falou-se muito sobre identificação de terroirs e o plantio de castas adequadas a cada um deles. É um avanço. Com base em alguns desses estudos, por exemplo, foram definidas as castas implantadas no projeto do locutor Galvão Bueno, na Campanha. Não é de lá, ainda, que saíram os cachos para o correto Bueno Paralelo 31, safra 2009, bebido no almoço e que está agora no mercado.
Trocando uma prosa mesclada de francês e castelhano - Michel Rolland é fluente em espanhol - para outra em (mezzo) italiano, é sempre inspirador conversar com Pio Boffa, proprietário e quarta geração da Pio Cesare, histórica vinícola do Piemonte. Prazeroso, igualmente, é compartilhar seus vinhos, entre outros o Piodilei 2008, um chardonnay fermentado em madeira, equilibrado, intenso e elegante, e o eternamente rico e complexo Barolo Ornato 2005. Com meus elogios ao branco, Boffa disse que, para se aprimorar, acertou uma assessoria "light" com Denis Dubourdieu, professor da Universidade de Bordeaux.
Com relação ao Ornato, nunca me canso de abordar o assunto "barolistas conservadores versus modernistas". Vira e mexe lembro de uma frase dele, dizendo que elabora seu barolo "com os olhos no futuro e os pés no passado", o que significa elaborar um vinho atrelado às tradições, mas sem a dureza e defeitos de antigamente. É uma das pautas futuras da coluna.
E, nesta semana, estive com Enrique Tirado, enólogo da Concha y Toro responsável pelo Don Melchor, um dos xodós da maior vinícola do Chile. Vale dizer que, dos 5 ícones da Concha y Toro, o simpático e "low profile" Tirado cuida de 3: Gravas del Maipo, syrah com 10% de cabernet sauvignon; Eolo, majoritariamente malbec de vinhas velhas da Trivento, na Argentina; e o Don Melchor. Os outros são o Maycas de Limari Chardonnay Quebrada Seca e o carmenère Carmin de Peumo, sob a tutela de Marcelo Papa e Ignacio Recabarren.
A vinda de Tirado faz parte do lançamento no mercado brasileiro do Don Melchor 2007, safra que comemora 20 anos de sua estreia e que inaugurou a categoria "premium" no Chile. Desde então, apenas dois outros enólogos estiveram na sua condução: Goetz Von Gersdorff, lendário diretor do grupo Concha y Toro, até 1991, e Pablo Morandé, um dos mais brilhantes do setor no país, que passou o bastão a Tirado em 1997.
A história do Don Melchor - nome em homenagem ao fundador da vinícola - começa pela decisão de produzir um vinho de expressão maior no Chile, na primeira metade dos anos 80. Para tanto, e mostrando que era para valer, uma comitiva foi a Bordeaux procurar o venerado Émile Peynaud, considerado o pai da enologia moderna, para buscar assessoria para desenvolver o projeto. Já em fase de aposentadoria - ele faleceu em 2004, aos 92 anos -, Peynaud indicou seu mais próximo colaborador, Jacques Boissenot, que participa de seu desenvolvimento até hoje - nas "ideias" e no blend.
A pergunta que não poderia faltar a Enrique Tirado era o que mudou desde que assumiu. Na vinificação, pouca coisa: dupla seleção de uvas, uma nova prensa vertical e macerações algo mais curtas, de 20 a 25 dias. No blend saiu a merlot, que havia sido incorporada em 1995 - até então era 100% cabernet sauvignon -, e entrou cabernet franc (entre 3% e 9%, dependendo do ano) a partir de 1999. O vinhedo é que mereceu mais atenção, mas sem grandes mágicas. Enrique fez um trabalho paciente de identificar a diversidade de características e comportamentos nos mais de 100 hectares de cabernet sauvignon, conseguindo por fim dividi-los em parcelas homogêneas que recebem tratamento específico. Ele tem, assim, uma paleta de cabernets distintos, que permite compor melhor o lote final.
A velha frase "na prática, a teoria é outra" não coube na hora da degustação. As seis safras degustadas demonstram que houve um trabalho sério e, como se fosse necessário, que Enrique Tirado não é um mero marqueteiro (aliás, é o contrário). Começamos com o 1989, que surpreende por estar bem vivo, ainda que falte um pouco de frescor e elegância. A safra 1993 já se mostrou mais clássica com bons taninos, uma boa preparação para o ótimo 1999, um tinto vibrante e compacto - bela estreia da cabernet franc. Achei que o seguinte, o 2003, ficou num patamar abaixo, faltando integração de álcool, acidez e taninos. Discutindo a questão com Tirado, talvez atinja o necessário equilíbrio com o tempo.
Nenhum senão, por sua vez, com o excelente 2007, que tem tudo em equilíbrio, com bela trama tânica. O mesmo, supostamente, pode se esperar do 2010 dadas as condições climáticas semelhantes - ano mais fresco -, segundo Enrique Tirado. Era uma amostra de barrica, jovem, portanto. Promete. Assim como o compromisso de nos reunirmos num futuro breve para mais conversa. Cada ano que passa há mais história para contar. Com vinho é assim.

(Fonte : Jornal Valor Econômico / imagem divulgação)

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