quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

SURPRESAS AGRADÁVEIS EM REGIÕES MENOS PRESTIGADAS


No fim de semana anterior ao início das degustações do Wines of Chile Awards (AWoCA), concurso voltado exclusivamente a vinhos chilenos realizado em Santiago na primeira quinzena de janeiro - tema da coluna da semana passada -, os organizadores levaram todos os componentes do júri para alguns dias de turismo no instigante Deserto do Atacama, situado no norte do país. Foi, ao mesmo tempo, uma forma inteligente de divulgar uma das mais belas atrações turísticas do país, dar condições para que alguns jurados tivessem tempo para relaxar depois de enfrentar longas viagens - a chinesa Jeannie Cho Lee, a japonesa Tomoko Ebisawa, e a coreana Kyoungja (Corinne) Eom vieram via Austrália, numa viagem de 24h -, permitir que todos se entrosassem e, também, tivessem uma primeira imersão nos vinhos chilenos.
Para tanto, foram programadas degustações de alto nível antes de cada almoço e de cada jantar, sobre temas específicos, caso das que reuniram ícones, vinhas velhas, carmenères, syrahs, blends, outras castas tintas e vinhos brancos, entre outros. Enfim, um apanhado do que existe de melhor e mais diversificado entre os vinhos locais nas distintas categorias, uma introdução mais qualificada do que iríamos encontrar no concurso dias depois.

Rafael Tirado: estreia no mercado com dois rótulos na 5ª e 34ª posições entre os melhores da América do Sul

O contato com a vinicultura do Chile nesses dias não parou por aí. Nos foi oferecido uma aula magna sobre o terroir chileno, ou, mais ainda, uma competente explanação sobre o que é terroir em seu sentido mais amplo, opinião compartilhada por todos - vale dizer, no público só havias "feras". Ninguém melhor para expor do que o "doutor" no assunto, Pedro Parra, que conheci há cerca de três anos durante uma visita à Tabali, no Vale do Limari. Parra, simpático e com ar molecão, é mestre em solo e agricultura pela Universidade de Montpellier, o centro de estudos sobre o tema mais avançado do planeta, e Ph.D. pelo prestigiado Institut Agronomique National, situado em Paris, títulos que lhe deram base para uma imersão em geologia, geomorfologia, clima, viticultura e enologia, e que se consolidaram ao passar anos ganhando experiência com os maiores especialistas franceses. Hoje, assessora importantes vinícolas chilenas, bem como algumas bodegas argentinas.
Os pontos levantados durante a palestra foram exemplificados na prática com oito vinhos de diferentes regiões e castas. Por uma questão de ética e, talvez, por receio de constranger os jurados, Parra deixou de colocar algum rótulo dos dois projetos pessoais que ele desenvolve, não por acaso, em áreas ainda menos prestigiadas, mas que ele acredita (e subliminarmente destacou durante a apresentação), caso de Alto Cachapoal, nos pés da Cordilheira, e de Traiguén, região bem mais ao sul (650 quilômetros de Santiago) - é de onde vem o Sol de Sol, talvez o melhor chardonnay da América do Sul e que recentemente tem como companhia um belo pinot noir (comercializado pela Zahil) -, terroir, segundo seu mentor, de maior potencial para o cultivo de pinot noir no Chile.
A primeira linha de vinhos próprios de Pedro Parra, que tem como sócios o chileno/francês François Massoc e o borgonhês Louis-Michel Liger-Belair (do Domaine Liger-Belair), é um ultra-premium que leva o nome Aristos ("excelência", em grego) e se compõe de um chardonnay e de uma mescla de 60% de cabernet sauvignon, 30% de merlot e 10% de syrah. Esse tinto já havia sido servido informalmente num dos jantares em Atacama, tendo recebido generosos e sinceros elogios, o que me levou a combinar uma ida, depois do concurso, para ver de perto o que eles estavam fazendo. São produções pequenas, 3 mil garrafas do tinto e apenas 500 do branco. Embora sejam da safra 2007, nenhum deles foi até agora comercializado, nem têm etiqueta definida - "vinho dessa categoria tem que ter mais tempo antes de ir para o mercado". Ambos impressionam pela estrutura e complexidade, e se encaixam perfeitamente na pretendida categoria ultra-premium, mesmo no que diz respeito ao preço estimado, que deve ficar na mesma faixa do Clos Apalta (R$ 280,00).
A segunda gama tem pretensões mais modestas, mas, em sua categoria, prima pela qualidade. Também não está no mercado - a primeira safra é 2010, mas até já tem rótulos aprovados. Neles, aparece um martelo, que é a ferramenta que Pedro utiliza para fazer suas prospecções no solo. Ela é composta por um chardonnay e um cabernet sauvignon, elaborados a partir de vinhedos situados em Alto Cachapoal, e um pinot noir, de Traiguén. Tem um nome bastante sugestivo: Clos des Fous, onde "clos" é o termo utilizado na França para designar um vinhedo murado e fous significa, literalmente, "loucos", em francês. É como eles foram taxados por acreditar ser possível extrair grandes vinhos de locais pouco usuais. "Loucos é provável, tontos não", comentou Massoc, durante a degustação. (Aristos e Clos des Fous ainda não têm importador no Brasil).
O rótulo Clos des Fous faz uma homenagem aos 'loucos' que acreditaram ser possível extrair grandes vinhos mesmo de regiões pouco usuais
Outra empreitada vitivinícola "fora da curva" é o Ribera del Lago (importado pela Casa do Porto), de propriedade de Rafael Tirado, irmão gêmeo de Enrique Tirado, responsável pelo Don Melchor, da Concha y Toro. É um projeto familiar que Rafael começou ainda durante as passagens vitoriosas pela Veramonte e Via Wines. Tanto o nome dado à vinícola quanto à linha de brancos e tintos têm razão de ser: a propriedade se situa à beira do lago Colbún - também na região alta de Cachapoal -, desfrutando, aliás, de uma vista maravilhosa; os vinhos levam a marca Laberinto, em alusão à maneira como os vinhedos foram implantados, diferentemente do sistema tradicional, em espaldeira, onde as parreiras são dispostas em linha e recebem a mesma exposição. Segundo Rafael Tirado, isso segue um conceito que ele imaginou para dar complexidade e diferencial aos vinhos.
O fato é que deu certo. Logo na primeira safra comercializada, a de 2007, colocada no mercado dois anos mais tarde, seus dois rótulos, o Laberinto Sauvignon Blanc e o Cabernet Sauvignon/Merlot, alcançaram altas pontuações no guia Descorchados, tendo se posicionado em 5º e 34º entre os 100 melhores vinhos da América do Sul na mesma publicação. Os vinhos que se seguiram, inclusive uma novidade, o pinot noir, ainda em barricas, provados durante a visita, comprovam a excelência do que Rafael Tirado produz.
A propósito, o roteiro de visitas que montei para os oito dias que se seguiram ao AWoCA - meus mais calorosos agradecimentos ao apoio, desprendimento e carinho que a Wines of Chile me dispensou - teve como princípio conhecer ou repassar as vinícolas que haviam me impressionado nas três últimas edições que participei do Descorchados. Começou, então, pela Kingston (importado pela Mercovino), que no guia de 2009 teve seu Bayo Oscuro Syrah 2006 eleito como melhor vinho da América do Sul entre os 100 melhores rótulos selecionados entre Chile e Argentina.
A família Kingston, de origem americana, instalou-se no Chile nos primeiros anos do século XX, quando o pioneiro da família veio procurar ouro no país. As cinco gerações subseqüentes seguiram outros caminhos, um deles a vinicultura, estabelecida numa parte da extensa propriedade situada na parte mais a oeste do Vale de Casablanca, a cerca de 20 quilômetros do Pacífico. Focada na produção de uvas de primeira qualidade, que vendia a terceiros, só mais recentemente, na segunda metade da década de 2000, decidiu reservar uma parcela pequena, mas a melhor, para elaborar seus próprios vinhos. Com instalações modernas dimensionadas para tal quantidade - não vão aumentar a produção - e voltada para vinhos de qualidade superior, não é surpresa que tenham obtido a invejada classificação no Descorchados.
A gama não fica restrita ao Bayo Oscuro, evidentemente. Seu segundo vinho, o Lucero Syrah, segue seus passos, com preço mais acessível. Além de bons pinot noirs, o Alazan e o Tobiano (todos nomes de cavalos, uma das atividades da família), vai um destaque especial para o Cariblanco, um sauvignon blanc de primeira linha.
Entre os rótulos até então desconhecidos que haviam me chamado a atenção nas degustações para o Descorchados estão os que compunham a linha T.H., da Undurraga (representada pela Mr. Man). A vinícola mudou de mãos em meados da última década e o novo proprietário lhe deu novos rumos, entre elas a contratação de Rafael Urrejola, brilhante enólogo da nova geração que estava na premiada Viña Leyda. Rafael veio com a missão de criar uma gama especial, depois denominada T.H., iniciais de Terroir Hunter (caçador de terroir, em inglês). Seguindo a linha do que desenvolvera na Leyda, Urrejola começou com vários sauvignon blanc de vinhedos distintos, em diferentes zonas - Leyda, Casablanca, Lo Abarca -, estendendo para os chardonnays e pinots. Partiu em seguida, mantendo alto padrão, para syrahs (Limari, Leyda e Maipo), cabernet sauvignon, e o (meu) atual xodó, a carignan.
O T.H. Carignan vem, como todos os velhos vinhedos dessa variedade, do Maule, região desde sempre desprezada que ganha prestígio com a "redescoberta" da casta. O vinho da Undurraga é uma mescla de uvas de duas vinhas, uma situada em Cauquenes (zona mais quente) e plantada em 1950, e outra em Loncomilla (mais fresca) com 40 anos. Mesmo considerando que um dos grandes atrativos da carignan - e razão de seu bem vindo retorno - é a boa acidez e o conseqüente equilíbrio que confere ao vinho, Rafael foi um pouco mais longe, jogando com uvas de distintas procedências para tirar partido da estrutura da primeira e de mais frescor da segunda.
O sucesso da carignan tende, no entanto, a ficar restrito aos vinhos da categoria superior, já que eles provém de vinhedos antigos cuja área total não passa de 600 hectares. As virtudes desta casta devem provocar interesse em novos plantações.
Quem tem, igualmente, um belo carignan é a De Martino (importado pela Decanter), mas mesmo que não tivesse eu teria me programado para visitá-la. É outra vinícola de ponta, com uma gama de vinhos muito consistente e em constante evolução. A explicação para todos esses atributos está em seu enólogo, Marcelo Retamal, um profissional competente e irrequieto. Está sempre buscando formas de aprimorar seus vinhos e extrair o máximo dos vinhedos. Com justiça levou dois "Trophys" no AWoCA.

(Fonte : Jornal Valor Econômico)

Nenhum comentário:

Postar um comentário